quarta-feira, 11 de abril de 2012

CONTANDO HISTÓRIAS

- A ÚLTIMA ALEGRIA -

Aroldo Camattari

Já passava das seis e a noite escureceu repentinamente. Uma chuva forte despencou de uma vez . Maria já iniciava o trabalho de parto sentindo fortes dores. Dona Sandrovina, a parteira, acabava de chegar e deu-se o nascimento de um garoto franzino, com pouco mais de um quilo. Sebastião, o pai, continuava no bar, saboreando a décima, como costume de todos os dias. Quando chegou em casa , quatro horas depois do parto , procurou uma cama para descansar as doses a mais que tinha absorvido . Ele foi pai e isso causava-lhe uma emoção , digna de absorver mais alguns goles , para comemorar aquela data. Conhecer o “minino”, fica pra “dispois”. Passou ...
Brota um novo dia e o astral da casa continuava tenso, depois daquela noite de bebedeiras, desentendimentos e pancadarias que normalmente acontecia , após tantos anos . Maria e Sebastião se embebedaram novamente e nova confusão provocaram . Dario, o filho, continuava triste com as lembranças de mais uma noite embalada pelos dois litros de cachaça em cacos, que descansavam , sem culpa, espalhados pelo chão da casa. Maria tinha sido atendida no Pronto Socorro e dormia anestesiada pela bebida. O marido já estava na rua com a boca seca por mais um gole.
Dario perambulava pelas ruas do centro da cidade, pedindo esmolas, cumprindo às exigências dos pais, para que não faltasse a “sagrada bebida” da noite . Quando chegava em casa , com a -féria curta- , apanhava . Ele já era uma máquina, um esguicho que molhava a casa, com bons goles da branquinha . Nunca foi alfabetizado . Os pais nem sabiam o que era isso e os genes , em herança , se repassaram . Ao fim do dia , Dario caçava seu rumo . Ia para casa , apresentar o balancete aos pais , conferindo e repassando a arrecadação diária .
Quando passava pela grande loja, parava e contemplava , com os olhos tristes de criança sonhadora e por longo tempo, a bicicleta que sonhava em ter um dia . Corta .
A cidade estava toda enfeitada, brindando as festividades natalinas . As luzes coloridas piscavam , as músicas sonorizavam o ambiente e as vitrines das lojas comerciais aguçavam os sonhos da população. Um senhor interpretava Papai-Noel à porta de uma das lojas, perto da vitrine repleta de brinquedos e as crianças se divertiam , pousando para fotos e entregando ao bom-velhinho seus pedidos , embrulhados em doces cartinhas infantis . Dario olhava de longe , com os olhos atentos, observando aquilo tudo , enquanto cumpria suas atividades de pedinte.
O movimento na cidade era intenso e pessoas se encontravam com felicitações natalinas e de Boas Festas , numa integração que alegrava ainda mais aquela contagiante comemoração . Os bares do centro estavam cheios e mais pessoas se reviam depois de anos e outras, em grupos , ocupavam as mesinhas e outros espaços em pé, comemorando alegremente aquela data esperada por um ano .
Dario se entusiasmou com aquela animada situação e aproveitou para arrecadar mais . Quando já estava com os bolsos mais recheados do que de costume, achou por bem encerrar a tarefa diária e cumprir o que havia combinado consigo . Parou defronte àquela vitrine cheia de brinquedos e novamente voltou a contemplar a tão sonhada bicicleta vermelha . Estava tão absorto naquela viagem , que não notou um casal de idosos que o reparavam com certa atenção . Dona Esmeralda o abordou , iniciando uma conversa amigável , interrogando-lhe o quê o encantava tanto, mediante a quantidade de brinquedos que continha a vitrine . E ele , surpreso e meio envergonhado , disse-lhes do seu sonho em ganhar uma bicicleta e que esperava , em Papai-Noel , aquela realização que durava uns bons anos . Dona Esmeralda , depois daquela explicação, olhou de soslaio para o Dr. Androsvaldo , deixando claro uma certa piedade e ele entendeu tudo . Suspense . Emoção . Surpresa .
Ao receber aquela notícia, Dario não se conteve e chorou de felicidade , pela primeira vez na vida . Maravilhou-se quando foi-lhe entregue a tão sonhada bicicleta. Aqueles anos todos, em que “Papai-Noel” nunca se lembrou dele, ficaram para trás. O majestoso veículo tornara-se , naquele instante, propriedade somente sua . O sonho havia se realizado e ficaria guardado a sete chaves , para que ninguém o tocasse , não ferindo-lhe o seu direito de posse .
Em euforia e encantado, aguava-lhe a boca a sua rápida estreia . Montou-se na bicicleta com a felicidade vinda da alma , sentimento esse , que nunca houvera na vida . E , quando sai de dentro da grande loja , cegamente e quase voando e vai dar na rua em frente , um veículo de grande porte que passava na mesma hora daquela imensa realização, amassa-lhe a bicicleta e a vida , prensando-lhes no chão , como a dois tomates maduros.

E , numa cova rasa , descansaram para sempre -
para não ferir-lhe o seu Direito de Posse .

Esse menino não nasceu para ter bicicleta.

Nasceu , para ter cicatrizes.